quarta-feira, 17 de junho de 2009

Tauromaquia e deícidio - o drama do universo





Embora a palavra “tauromaquia” seja oriunda do grego (tauromachia); o afresco cretense do atleta que salta o touro, na última imagem, representa uma idéia recorrente em diversas culturas da antiguidade e também da contemporaneidade, a luta com touros. A própria permanência desse símbolo através da história e o lugar em que aconteciam nos permitem remeter a cena não a um aspecto do cotidiano, mas sim da religiosidade.

A pintura foi encontrada no palácio de Cnosso que como outros palácios cretenses possui um característico pátio central. Acredita-se que era nesse pátio que aconteciam os rituais envolvendo a figura do touro. Esses pátios centrais eram adornados com inúmeros bucrânios, estilizações de chifres de touro que representam o animal sacrificado e vários objetos chamados de lábrys, que é propriamente um machado de duas achas utilizado para sacrificar o animal. É possível perceber nisso tudo um cenário sugestivo para um drama bem especial, o sacrifício do touro.

Recorrendo a mitologia para elucidar a razão da tauromaquia cretense podemos trazer duas figuras relacionadas ao animal. Primeiro, o mito de Zeus Kretagenes que, sob a forma de um touro copula com Europa, esposa do rei de Creta. Aceitamos também a presença de outra imagem mitológica, o Zagreus cultuado em Creta e identificado como uma variação do deus Dioniso, uma das figuras centrais da mitologia cretense, também associado à figura do touro. Dessa forma, no contexto minóico, é possível relacionar as figuras de “Zeus Cretense” e “Dionísio Zagreus” como dois aspectos de uma só divindade, coincidindo na mesma metáfora tauromorfa.

Porém, em Creta não é possível dissociar a vida religiosa de uma forte ambiência feminina, e é esse aspecto que pode nos permitir entender o elemento cruento da tauromaquia, o sacrifício do animal. Essa ambiência feminina na religião cretense está ligada à forte simbologia da Deusa Mãe, presente em diversas culturas da antiguidade, e como a tauromaquia, também presente nas religiões contemporâneas. Em geral, os cultos às figuras femininas estão ligados à fertilidade, agricultura, estações do ano e nascimento. Esses cultos também representam um drama que acontece no final dos tempos primordiais e na transição para o tempo onde se passa a vida natural dos homens, ou seja, seriam esses dramas representações cosmogônicas, da criação do universo.

Um elemento recorrente nesses dramas é o assassínio da divindade, e no caso do culto à Deusa Mãe, a sua transformação numa planta comestível. No entanto, a metáfora vegetal não é única e vêm acompanhada de metáforas animais e astrais; muitas vezes as três juntas no decurso do drama que narra a história da divindade. Uma das conclusões que podemos fazer é que o sacrifício animal se insere na representação cosmogônica e antropogônica que marca o drama da divindade. O sacrifício, dentro do culto como representação periódica do drama primordial da divindade, simbolizaria o deicídio e a restituição da ordem presente, da vida dos homens.

Essas deusas primordiais possuem representantes e acólitos, que podem ser figuras masculinas. Dionísio é filho de Perséfone, que por sua vez é filha de Demeter. Essa última, como deusa ligada à fertilidade e a vida nada mais é do que mais uma das imagens e representações da Deusa Mãe dos povos plantadores primitivos. Dioniso, como “acólito” ou “acessor” da Deusa Mãe liga-se estreitamente à sua simbologia. Vale ressaltar que esse deus, em sua mitografia, passa por uma paixão, morte e ressurreição, contando também com metamorfoses vegetais e animais. Portanto, o touro sacrificado é o deus, e a tauromaquia, um dos atos de um drama que reconta a história da humanidade e reconstitui a ordem do presente.

O afresco de Cnosso nos permite perceber diversos outros elementos da cultura minóica, como a liberdade dos corpos e seu sinuoso e dionisíaco ideal de beleza. O que nos remete também à grande importância desse deus na religião cretense, intimamente ligada ao feminino e o culto da Deusa Mãe.

Como é possível perceber a simbologia da luta com o touro é extremamente forte e perdura até os dias de hoje. No afresco cretense, a imagem vem carregada de beleza e transmite essa força milenar. O homem e a representação do animal bovino de grande porte, presente nas paredes das civilizações desde o paleolítico.

Perpassando outras religiões e práticas culturais - não apenas da antiguidade que certamente influenciaram ou foram influenciadas pelos cretenses - podemos de alguma maneira relacionar elementos de sua história com o drama de Dionísio Tauromorfo. As touradas que se tornaram clássicas na Espanha são apenas exemplos mais evidentes. O Jesus Cristo que tem sua paixão, assassínio e ressurreição e que funda uma nova ordem para o mundo, amparado pela Virgem Maria - a Deusa Mãe dos cristãos – e que também é sacrificado e ressuscitado periodicamente. E ainda no universo cristão, o nosso Bumba-meu-boi, que de fato representa a paixão, morte e a ressurreição do Espírito Santo.

O milenar afresco de Creta; tão distante no tempo, e para nós, também no espaço, sob essa perspectiva se torna bastante próximo. Embora esclareça muito sobre os percursos e as influências das culturas, tanto no aspecto técnico quanto no religioso, aprofunda sobremaneira os mistérios metafísicos e mitológicos considerados, superados pelo ser humano moderno e racional.

Um comentário:

  1. me recordo também dos judeus adorando um bezerro de ouro, duramente criticado por moisés.

    o culto a vaca na índia.

    demônios taurinos do xintoísmo.

    sem contar o Lao Tse peregrinando pela china sobre o lombo de um touro.

    animal sinistro.

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